terça-feira, 5 de maio de 2009

Príncipes...

Estávamos sentados a contemplar o crepúsculo do sábado. Ele nervoso por ter que finalizar mais uma edição. Ela eufórica em busca do que leria no sarau da amiga. Eu a falar e escrever no bloquinho de notas em cima da madeira clara do escritório. Ele, em meio à inquietude do momento, resolveu parar, pegar um livro antigo no armário e ler uma poesia de Fernando Pessoa para mim. Ela, no corredor, ao escutar a leitura puxou uma cadeira e disse que havia descoberto o que leria no sarau daquela noite. Mas antes de partir, resolveu ler para nós. Ao terminar, os olhares pareciam penetrar nas almas, o silêncio predominou e gritou dentro de cada um. Era como se ali, naquele pedaço de livro, alguém tivesse descrito tudo o que buscávamos e sentíamos. Eu com o coração acelerado, querendo saltar pela boca, emocionado, disse: “Hoje aprendi a gostar de poesia, ou melhor, aprendi a gostar da sutileza de Fernando Pessoa”.
Ambos dispararam um lindo e penetrante sorriso em minha direção. E foi nessa troca inexplicável, com o Sol quase se pondo na janela, que marcamos a nossa emoção.
Obrigada voz doce e singela dos cabelos brancos. Obrigada menino-homem dos olhos verdes e das mãos grandes...

POEMA EM LINHA RETA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos

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